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  • Foto do escritorForum Aborto Legal RS

Ventre Livre:  30 anos e ainda muito atual

Nesta semana de mobilização em torno ao 28 de setembro, dia latino-americano e caribenho de luta pela descriminalização e legalização do aborto, o Fórum Aborto Legal do RS (FALRS) conversou com Ana Luiza Azevedo, diretora do documentário Ventre Livre, que completou 30 anos neste 2024.


O filme aprofunda o debate sobre saúde sexual e reprodutiva em um cenário marcado na época pela esterilização de 27% das mulheres brasileiras em idade reprodutiva, mortes de mulheres por abortos inseguros, crianças grávidas vítimas de violência sexual e enorme desigualdade social.


Ana fala sobre a atualidade do filme, chama a atenção para os avanços e os retrocessos que aconteceram nesses 30 anos e para a importância de eleger bancadas progressistas e diversas dispostas a avançar no tema da legalização do aborto.

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FALRS: O aborto é sempre um tabu e ter o depoimento de mulheres reais trouxe muita coragem. Você acredita que hoje este debate está mais fácil de ser trazido pelo cinema (ou outros meios)?


Ana: O aborto continua sendo um tabu e talvez maior ainda. Quando eu fiz o filme, no início dos anos 1990, a gente acreditava que estava avançando na discussão em relação à descriminalização do aborto. Muitos médicos estavam nessa luta junto com a gente e a necessidade de avançar não só na abordagem, como na ampliação da discussão e na luta para garantir que hospitais públicos fizessem o aborto legal, era fundamental. E alguns avanços eram visíveis. Um exemplo é a reportagem da revista Veja, de1997, com depoimento de mulheres famosas que tinham feito aborto, entre elas, a apresentadora Hebe Camargo e as atrizes Ciça Guimarães e Cássia Kiss. Reportagem com chamada e fotos delas na capa. Hoje é difícil imaginar uma revista de direita como a Veja colocando em pauta a descriminalização do aborto, com aquele espaço e conteúdo. O crescimento das igrejas pentecostais que, com seu projeto de poder, estão em todas as instâncias do governo e do Congresso Nacional, trouxe a discussão com uma abordagem muito mais restrita e conservadora. Claro que as propostas para restringir o aborto  previsto em lei (nos casos de estupro, anencefalia e de risco de vida para a gestante) sempre existiu. Mas hoje as tentativas de acabar com o pouco que se conquistou são ainda mais frequentes e barulhentas. Médicos que se dispõem a fazer o aborto legal são denunciados e perseguidos. Cada vez que o caso de uma menina que busca pelo aborto legal por uma gravidez provocada por estupro chega à imprensa ganha uma abordagem sensacionalista, sem qualquer pudor em expor a vítima. E a mobilização da extrema direita para impedir o aborto se transforma num grande espetáculo. Temos que estar sempre em alerta para não perder um centímetro do que se conquistou. 


 FALRS:  Em que contexto Ventre  Livre foi pensado?


Ana: Ventre Livre foi pensado para passar no encontro da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos reprodutivos. Naquele momento, eu pesquisei muito e achava que tinha que falar sobre três questões mais críticas sobre direitos reprodutivos no Brasil: esterilizações, gravidez na adolescência e aborto. Acho que, de lá para cá, nós tivemos algum avanço. Aquela esterilização em massa, programada e estimulada por políticos e até fundações internacionais, já não acontece. Tivemos, também, algum avanço na discussão de planejamento familiar, de informação sobre métodos contraceptivos, na distribuição gratuita de pílulas pelo SUS. Mas em relação ao aborto, não. Se naquela época em que fiz Ventre Livre era muito raro um processo contra a mulher que fez o aborto e a aborteira, hoje tem muito mais processos em aberto e casos de enfermeiras e médicos denunciando, chamando a polícia quando chega uma mulher necessitando de curetagem obviamente em consequência de aborto malsucedido. Não podemos esquecer, também, que tivemos quatro anos de um governo que proibiu a discussão de gênero nas escolas, que tentou acabar com a saúde e a educação públicas, que estimulou a perseguição a qualquer ação e pauta mais progressista.


 FALRS: Qual a contribuição do filme para a luta de hoje pela legalização?


Ana: Infelizmente, Ventre Livre é muito atual. Eu acho que uma discussão a partir do filme pode contribuir para que a gente avance ou tente avançar nesse debate. A questão do aborto não é uma questão de princípio individual, de que cada pessoa decide ou não se quer fazer um aborto. Estamos falando de direitos reprodutivos e de saúde pública: muitas mulheres morrem por causa de abortos feitos em condições precárias. E elas, nós mulheres, vamos continuar fazendo aborto quando necessário. É sempre uma situação-limite. É absurdo pensar nisso como uma discussão moral e ética sobre “devo ou não fazer um aborto”. O filme chama a atenção para a questão da desigualdade quando se fala em direitos reprodutivos. Quem mais morre por causas provocadas por um aborto malsucedido são mulheres pobres e pretas. Se tivéssemos um Congresso que não fosse majoritariamente de homens brancos, certamente essa questão já teria avançado, porque as mulheres sabem do que se trata.

 

FALRS: Mas há mulheres no Congresso atual que são conservadoras e alinhadas com um projeto de retirada de direitos, inclusive várias votaram contra o projeto de igualdade salarial...

Ana:  Hoje nós temos um Congresso predominantemente masculino, heterossexual e branco e aí algumas discussões nem entram em pauta. Algumas das propostas mais arrojadas já feitas no passado foram simplesmente engavetadas, nem seguiram para a plenária. Mas é verdade que não adianta apenas ter mais mulheres. Algumas mulheres conservadoras, como a Damares, por exemplo, nunca serão nossas aliadas. Assim como deputados ou candidatos a governos de esquerda, também, não querem se aliar a esta pauta por acreditarem que ser a favor da legalização do aborto perde voto. É interessante comparar com os Estados Unidos, onde a candidata à presidência, Kamala Harris, faz questão o tempo todo de falar sobre o aborto, de não retroagir direitos, de que essa seja uma questão federal. Ou seja, isso é entendido nos Estados Unidos como uma questão que ganha voto. Aqui no Brasil, não. Aqui um candidato como (José) Serra, que era de centro-esquerda, trouxe o tema do aborto para tirar votos de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2010. Aqui os candidatos precisam se aliar aos pastores para ganhar voto e uma das moedas de troca é não colocar a questão do aborto em discussão. E, enquanto isso, as mulheres seguem morrendo. O único jeito de avançarmos em relação a descriminalização do aborto é termos um judiciário e um congresso com maior diversidade e uma bancada progressista forte. É difícil, mas como disse o escritor francês Romain Garry, a esperança precisa de nós para existir. Seguimos.


(26/09/2024)


Serviço


Ventre livre (1994, 16 mm, 48 min, 1.33:1)

Direção: Ana Luiza Azevedo. Porto Alegre: Casa de Cinema de Porto Alegre. 

Sinopse: O país do futuro é onde as crianças engravidam? O maior país católico do mundo é onde mais de trinta mil mulheres morrem em conseqüência de aborto? A 10ª economia do planeta é a do país onde 27% das mulheres estão esterilizadas? VENTRE LIVRE conta um pouco da história de Vera, Ivonete, Carmen, Denise, Maria do Carmo, Marlove - pessoas que nasceram no país com a mais desigual distribuição de renda do planeta. Um documentário sobre direitos reprodutivos no Brasil, enquanto o futuro não chega.

Legendas (subtitles): english, español, français, português. 

Fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre (https://www.casacinepoa.com.br/filmes/ventre-livre/)

Disponível gratuitamente para assistir online em https://vimeo.com/239530546 

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